“A gente não esquece porque a gente sabe o que vai dizer”
Uma etnografia da cantoria de pé-de-parede da zona da mata de Pernambuco
Simone Silva
Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Antropologia Social, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Antropologia Social.
Orientador(es): Lygia Maria Sigaud (in memoriam)
Federico Neiburg Rio de Janeiro Março 2010
Severino José de Souza (Bio Caboclo)
Bio Caboclo na cantoria de Dona Brígida. Sítio Augustinho – Feira Nova, janeiro de 2007 A aproximação com Bio Caboclo se deu, tal como falei no início do capítulo, no contexto do programa “Manhã de Viola”. Diante de algumas possibilidades que me foram ali apresentadas, optei por acompanhar continuamente as cantorias de Heleno Fragoso em detrimento das de Bio Caboclo, especialmente pelo fato daquele cantador residir no mesmo local da rádio Vitória FM. Suspeitava que, seguindo um cantador daquela região, seria mais fácil de alcançar parte da grande rede da qual é feita uma cantoria, que passa necessariamente por um programa de rádio. Dessa forma, apesar da evidente eloqüência de Bio Caboclo e de sua generosa disponibilidade em querer conversar, eu ia às suas cantorias quando, por ventura, Heleno Fragoso não tinha trato. Além disso, depois de algum tempo acompanhando Heleno, era-me um tanto quanto embaraçoso dizer-lhe que iria à cantoria de outro cantador. Heleno já me havia apresentado várias de suas amigas, na casa das quais muitas vezes eu dormi, e quando
97 ia acertar um trato, já anunciava a minha presença ao dono da casa onde ocorreria a brincadeira. Desse modo, percebi que naquela altura já não se tratava mais de encontrar um argumento que lhe convencesse da importância para o meu trabalho de também acompanhar as cantorias de Bio Caboclo na região de Glória de Goitá, Lagoa de Itaenga, Vitória, Chã de Alegria, Machado e Feira Nova. Eu, finalmente, me encontrava incorporada à uma das pontas da grande rede de relações delineada pela cantoria de pé-de-parede e isso tinha implicações que, entre outros aspectos, acarretavam-me escolhas e restrições. Apesar de Bio Caboclo ter uma trajetória de vida muito semelhante à de Manuel Domingues e a de Beija-Flor, no que concerne à viola enquanto uma alternativa de trabalho, a sua importância tornou-se ímpar no contexto desse trabalho, uma vez que a dinâmica de como foi se dando a sua profissionalização como cantador explicita de forma singular a cantoria de viola como uma forma eficaz de comunicação entre, por exemplo, políticos e a população local. Semelhante ao período em que sindicatos rurais patrocinavam programas de cantoria e através dele “cantavam” os trabalhadores para se filiar, os cantadores são disputados por lideranças políticas, não somente para ocupar o palanque eleitoral, mas também para serem seus cabos-eleitorais. Através de uma minuciosa descrição do cenário político de Lagoa de Itaenga, cidade em que reside o cantador, Bio Caboclo foi me fazendo ver o quanto o poeta pode ser um capital importante na disputa política na região da mata centro-norte. Por exemplo, um cantador com nome tem recursos para pleitear junto a um político desde o pagamento de uma hora numa rádio até um contrato de trabalho na prefeitura para um membro de sua família. O aspecto carismático do cantador e também o gosto da população da área rural da zona da mata pela poesia tornam a viola um elemento de
98 intermediação entre a emissão e recepção do discurso de lideranças políticas locais. Além disso, o cantador está imbricado em uma rede de relações fomentadas pelo pé-de-parede, a qual o político pode ter acesso mais facilmente com a mediação do poeta. Bio Caboclo é casado e pai de quatro filhos, dos quais dois moram com ele. Nenhum deles é cantador de viola, mas todos os três rapazes sabem fazer versos. Josuel, o filho casado, já cantou no maracatu de Carpina e Josivaldo também sabe improvisar, mas, segundo o pai, é melhor escrevendo versos. Ele acompanha Bio em seu grupo de coco, respondendo as toadas. Em 2007, Bio completou 22 anos como mestre de maracatu rural e 26 como cantador de viola. 2.4.1 A vida no engenho, a leitura de folhetos e o reconhecimento da habilidade de improvisar Bio Caboclo, filho de trabalhadores rurais, nasceu no Engenho Goitá Grande, em Glória de Goitá. Ele, suas oito irmãs e seus três irmãos desde muito cedo trabalharam no roçado e, principalmente, na casa de farinha de seu pai. Devido à falta de possibilidade de se dedicar integralmente aos estudos, acabou estudando até a terceira série do antigo primário. Com oito anos de idade, por exemplo, Biu, que estudava no turno da tarde, levantava cedo para ajudar o pai no corte da cana ou na “limpa do mato”. A família se revezava em vários turnos ao longo do dia, cuja jornada começava às três da madrugada, para dar conta do preparo da farinha. Hoje eu fico admirado com a rua onde eu vivo porque o interior da gente era muito pesado. A gente acordava de três horas da madrugada para raspar mandioca na casa de farinha. Eram cinco caixas de mandioca, meio mundo de mandioca para raspar, eu e minhas irmãs. E quando era sete horas da manhã saía outra turma para arrancar mais. A gente trabalhava direto na farinha. Quando a gente terminava aquela farinhada já era oito, nove da noite. A gente ia dormir uma coisinha, mas já tinha iniciado aquela turma raspando também. Quando era três horas da madrugada começava de novo e assim ia até a sexta feira. No sábado a gente saía para vender as farinhas. Meu pai tinha uns cavalos, então a gente ia vender em Paudalho. A gente saía de Goitá para Paudalho nos cavalos para vender essas farinhas. Depois foi que ele comprou uma Pick-up. E a gente foi levando a vida assim. Seu pai era um grande fã de cantoria e ouvinte assíduo de programa de
99 cantador em rádio e, nas noites de sábado, costumava levar a família para participar das brincadeiras comuns da região: mamulengo, cavalo-marinho, ciranda e cantoria de viola. Foi nos pés-de-paredes dos vizinhos Fernando de Melo e de Xavier que Bio Caboclo assistiu Guriatã do Norte, um dos cantadores da região com mais anos na profissão, Luis da Silveira, Aurélio da Silveira e o seu primo Ferreirinha, com quem mais tarde veio a cantar. Quando criança, ele e toda a molecada da vizinhança buscavam meios de sempre, em dia de cantoria, ter um trocado para “dar ao cantador”. Na safra do caju, por exemplo, cantadores cobravam o pagamento dos garotos porque segundo eles “os meninos tinham dinheiro porque era época da castanha”. O cantador diz que foi através dos folhetos, cuja leitura ele presenciava na feira através da propaganda do vendedor, que ele aprendeu a cantar. Treinou sozinho lendo as canções e as histórias em casa e, quando se sentiu apto, passou a ler para a vizinhança, que começou a convidá-lo freqüentemente para cantar as histórias. A partir de então, Bio Caboclo, mesmo não tendo ainda a viola, largou o trabalho na casa de farinha e passou a ganhar “o seu trocado” com a leitura dos folhetos. Os cantadores que faziam cantorias na região onde Biu morava, sabendo que o menino já lia bem o folheto, encorajavam-no com freqüência a fazer algumas estrofes nos intervalos da brincadeira. “Mas eu não sabia tocar. Pega a viola, vai por ali, bota o dedo assim (...) Daqui a pouco eu fazia um baiãozinho todo desmantelado, todo fora de rima, de métrica, mas... ‘você vai cantar, você vai ser um poeta’”. 2.4.2 A cana pela viola Bio, durante algum tempo, buscou incessantemente um meio de sair do “trabalho na cana”. Inventei de ir para São Paulo, mas quando cheguei no Recife, na rodoviária, eu me arrependi. Então eu disse: não vou não! Eu queria sair do pesado. Mas eu vou para São Paulo para trabalhar de noite? Vou nada! Vou comprar uma viola. Comprei desses violões pequenos, voltei para casa. Em vez de comprar a passagem, comprei o violão. Disse para o meu pai: agora vou cantar de viola, não vou trabalhar mais não.
100 Uma vez com a viola, ele começou a freqüentar os vários programas de cantoria veiculados pela Rádio Planalto AM49, que tinha uma ampla área de cobertura com grande audiência. Segundo os cantadores mais velhos com quem trabalhei, essa foi a rádio que mais deu apoio à cantoria de viola, abrindo espaço praticamente ao longo de todo o dia para duplas de cantadores. Bio Caboclo então, através da meia hora que conseguiu comprar – 16:30-17:00, começou a angariar tratos com um parceiro seu da cidade de Paudalho, que também estava começando na profissão. Chegou fazer muitas cantorias pela mata Sul, sobretudo nas usinas Mercedes e Ipojuca, em Escada e em Jaboatão. “Ele, ruim que uma gota! E eu também! Começamos por ali, para baixo e para cima com a viola, a gente ia, ganhava um trocadinho. Fui ajeitando e levando a carreira e então cheguei a profissão”. Ambientes de cantoria de Bio Caboclo: marcação em vermelho = no passado; marcação em azul escuro = em 2006 e 2007 49 Além das cidades da mata centro-norte vizinhas à Carpina, a freqüência da Rádio Planalto alcançava Surubim, Catolé de Casinha, Chatinha, entre outros lugares já no agreste pernambucano.
103 narrativa se dava de outra forma. O seu relato sobre a expulsão de sua família do sítio foi diversas vezes interrompido por incomuns momentos de silêncio. De fato, ele só veio me contar sobre esse episódio quando eu, ao longo de algumas conversas, retomava insistentemente a questão de como ele começou a cantar em comícios políticos. A narrativa até então era construída de forma que sobressaísse o trabalho de sua família na cana e, especialmente, na casa de farinha, as brincadeiras nas casas dos vizinhos nos finais de semana e a sua inserção na atividade de cantador; a partir desse ponto ele sempre me dizia: “Pronto, não parei mais. Fui cantando, cantando, cantando para político...”. De maneira distinta dos cantadores até aqui relatados, a “ida para rua” na trajetória de Bio Caboclo não foi uma escolha ou uma alternativa criada pela profissionalização enquanto cantador, mas sim um processo violento que, ao contrário dos demais, parecia, à primeira vista, que interromperia o curso da atividade que “lhe tinha livrado” da sobrecarga do trabalho na cana. Vale ressaltar que os primeiros anos na profissão de cantador lhes garantem sair do trabalho na cana, mas não chega a possibilitar, de imediato, condições de sair do engenho, tal como explicitado na trajetória de Manuel Domingues, que ainda morou seis anos no Engenho Diamante depois de ter ingressado na profissão de cantador. Aonde eu me criei no sítio, eu tenho dito essa história a muita gente e muita gente fica abismada, masaonde eu me criei no sítio, na maneira que eu falei antes, trabalhando desde os 8 anos de idade, carregando mandioca, cortando cana, apanhando capim, lutando por tudo na vida, hoje meus filhos às onze horas estão dormindo. Um esperando por mim, outro pagando aluguel, outro com filho dentro de casa por conta dessa conseqüência. Porque eu digo hoje com os filhos que eu tenho, se eu morasse onde o meu pai morou, mesmo ele falecido, mas cada um filho meu teria uma casa. O sítio lá era seis quartosde terra. Seis quartos de terra soma 100 contas de terra. Dá mais de 100. Todo mundo teria um pedacinho de terra para trabalhar, um bezerro, uma cabra, um porco, uma casinha de taipa, mas teria, uma cacimba de água doce. E esse povo todo hoje vive na rua e quando eu passo no sítio onde eu nasci, eu choro. Vê aqueles pés de mangueira, aqueles pés de jaca, aqueles cajueiros que tinham antigamente, hoje está tudo abandonado. Só seca ou senão cana! Se for um ano bom de inverno, tem safra, mas se não for, passa dois, três anos somente na terra. Para mim, a miséria do pobre quem fez foi esse povo político. No tempo do governador Moura Cavalcante. 2.4.4 A cantoria e a política Uma vez na rua, a família mudou-se para Lagoa de Itaenga, onde o pai do
104 cantador construiu uma casa. Já na nova residência, a família, como todas as demais da região, recebeu a visita do então candidato a prefeito, que perguntou se Bio era cantador. O poeta respondeu-lhe que sim. Paizinho disse então que queria ver o jovem ao seu lado no palanque. Em contrapartida, Bio pleiteou uma hora na Rádio Planalto e também um emprego na prefeitura. Como Paizinho foi eleito, o cantador conseguiu o programa e também o emprego como controlador do chafariz da cidade, onde a população, que não tem um sistema automático de fornecimento hídrico, abastece os seus tonéis. Ele trabalhava das sete da manhã às dez da noite controlando as torneiras d’água, que são abertas em horas específicas ao longo do dia. Após a conturbada gestão de Paizinho, que, com dois anos de mandato, acabou sendo expulso da prefeitura porque, segundo o cantador, não seguiu as recomendações dos dirigentes da Usina Petribu, veio a gestão do já conhecido vereador Sebastião Menino, que tinha sido vice de Paizinho. Essa mudança não acarretou problemas a Bio Caboclo porque Sebastião Menino era do mesmo partido de Paizinho, o PSB. Na seqüência, Sebastião Menino conseguiu que Fernando Antônio, que tinha sido o seu tesoureiro, e que vinha a ser sobrinho de Paizinho, lhe sucedesse. Na eleição seguinte Fernando Antônio rompe com Sebastião Menino, que mesmo assim conseguiu ganhar a eleição, mas acabou perdendo a última, onde foi eleito Carlos Vicente, que, na época da pesquisa, estava em seu segundo mandato. Bio Caboclo rompeu com Carlos Vicente logo que ele assumiu a prefeitura. O candidato convidou-lhe insistentemente para se apresentar em seu palanque com o seu grupo de maracatu e o coco-de-roda, mas pela aliança que tinha com Sebastião Menino, sempre recusou o convite. Tal como explicitado por Moacir Palmeira e Beatriz Heredia (1995) a presença de artistas (cantores, cantadores, violeiros, artistas de rádio e TV), autoridades e convidados no palanque é essencial para o comício por
105 gozarem de certo reconhecimento público. No caso dos cantadores profissionais, para além da notoriedade, diria que a sua presença se faz importante essencialmente porque na região ele é parte de uma grande rede de relações fomentada pelo pé-de-parede. Desse modo, chegar ao cantador é ter condições de acesso a todos aqueles de seus ambientes de cantoria, com os quais é mantida uma relação de confiança. Quando Carlos Vicente foi eleito, Biu perdeu o seu emprego como controlador do chafariz e passou a ter a viola, o maracatu e o coco como a sua única fonte de renda. Além disso, durante os quatro anos da primeira gestão de Carlos Vicente, os grupos de maracatu e de coco do cantador não se apresentaram em festas públicas em Lagoa de Itaenga. Se houvesse um convite para se apresentar na casa de um conhecido, Bio Caboclo realizava a brincadeira, mas, em oposição ao então prefeito, deixou de se apresentar em festas da cidade. Nesse intervalo, a convite do prefeito de Nazaré da mata, Bio e o seu grupo apresentaram-se em diversos eventos naquela cidade, em Glória de Goitá e em Feira Nova. Passou esses quatro anos. Só que nesse período de quatro anos, eu havia amadurecido muito na política e a gente vai aprendendo umas coisas. Eu achei que não levei muita vantagem não porque a gente elegeu um deputado, Aglailson Junior, segurei essa oposição todinha... Todo São João o Sebastião tinha uma sede de escola de samba e eu deixava de atender o prefeito, pagando bem, para agradar... eu ia lá paracantar de graça. Ia lá para Sebastião Menino. Invadia de gente. E o do prefeito, acabava a banda dele,acabava tudo e o povo lá no coco. E eu cantando para Sebastião Menino mesmo sem estar no poder. Então eu achei que o deputado deveria fazer tudo por mim, mas não fez. Eu me enjoei devido a isso. Me encabulei com política devido a isso. Apesar da insatisfação, Bio Caboclo nunca chegou a romper com o ex-prefeito Sebastião Menino. Eles foram umas três vezes consecutivas à Assembléia para pleitear uma hora na rádio com o então deputado Aglailson Júnior. Biu explicou-lhe que com o programa, ele poderia falar no nome deles, mandar mensagem para o povo, mas nada disso convenceu o deputado a ceder o programa para o cantador. Bio Caboclo, ao perceber que nada conseguiria, reuniu-se na casa de Sebastião com o deputado e lhe disse que, a partir daquele momento, não faria mais oposição. Nesse ínterim, o cantador
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